Por Natana Magalhães, historiadora e graduanda em Psicologia pela UERJ
No mundo, a cada 10 segundos, uma pessoa morre por causas associadas ao álcool. Esse dado é da OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde) e poderia ser suficiente para que houvesse regulamentações para um produto tão nocivo socialmente. No entanto, existem interesses comerciais e indústrias poderosas que têm impedido que informações de qualidade e menos enviesadas cheguem até as pessoas, além de estimular a venda de produtos que são prejudiciais à saúde pública e ao meio ambiente, como as bebidas alcoólicas.
O Brasil é o terceiro maior produtor e consumidor de cervejas e refrigerantes do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos da América (EUA) e da China. Quando diz-se que a vida das pessoas e do planeta tem sido afetada pela fabricação e consumo de álcool, é porque essa é uma questão indissociável e interdependente que está cada vez mais fragilizada pelos efeitos negativos de produtos dispensáveis, que em se tratando de bebidas alcóolicas, englobam desde mudanças comportamentais ao aumento da violência, acidentes e o risco potencializado para mais de duzentas doenças.
A indústria de bebidas alcoólicas, como parte integrante do sistema capitalista, também contribui para a questão socioambiental. Para citar brevemente, a fabricação em larga escala de bebidas exige grandes quantidades de recursos naturais, como água e energia, para a sua produção, o transporte de matéria-prima e produtos acabados. Isso resulta em uma pressão adicional sobre os recursos hídricos, especialmente em regiões onde já existe escassez de água.
Portanto, a produção de bebidas alcoólicas apresenta uma séria ameaça à segurança hídrica global, como apontado no estudo “Álcool como obstáculo ao desenvolvimento” de 2022. Para cada litro de vinho, usa-se 870 litros de água, e para cada litro de cerveja são necessários 298 litros de água. Os custos ambientais associados à produção desenfreada das indústrias, incluem impactos na qualidade do ar, água e solo, além de perda de biodiversidade e homogeneização de paisagens, um processo que contribui para a extinção de espécies, onde ecossistemas originalmente diversos e variados tornam-se mais uniformes (Movendi, ACT, 2022).
A concessão de permissões para essa produção frequentemente ocorre sem a realização de estudos de impacto ambiental adequados. A indústria do álcool é uma das principais fontes de poluição e degradação ambiental, com resíduos tóxicos, impactos adversos na estrutura do solo e dos corpos d'água, além de efeitos negativos sobre a fotossíntese e a vida aquática e terrestre devido à alta toxicidade das águas residuais.
Todo esse contexto tem sido revelado por estudiosos da saúde, movimentos de causas ambientais e direitos humanos, numa correlação de forças ainda muito desigual se considerarmos que, para além dessas discussões, pesquisadores têm apontado a importância dos atravessamentos do marketing irrestrito que exacerbam a vulnerabilidade do consumidor e influenciam a psique coletiva, conforme discutido por Mendonça, Kozicki e Coelho (2014). Ou seja, tão relevante quanto a produção ostensiva é o marketing que a sustenta e atravessa a capacidade de decisão consciente das pessoas em uma sociedade cada vez mais pautada pelo consumo.
Nesse sentido, o chamado “neuromarketing” estuda as respostas fisiológicas e cerebrais do consumidor com intenção de desenvolver estratégias de venda mais eficazes. Intelectuais de áreas distintas têm se dedicado a entender seus efeitos nas dinâmicas socioculturais. Podemos citar exemplos significativos das estratégias de vendas mobilizadas pelas propagandas da indústria do álcool no Brasil, que têm sido construídas historicamente para ganhar forte apelo no imaginário popular.
De forma recorrente, utilizam-se elementos emocionais e patrióticos para associar o consumo de bebida com o “orgulho nacional” e a celebração do futebol, um dos maiores símbolos culturais do Brasil. A chamada à emoção das pessoas com imagens em contexto de festa e com “brasileiros felizes” tem nas propagandas a ideia de que a bebida seria um elemento essencial da identidade nacional e recurso primordial para se aproveitar plenamente os jogos ou se integrar com os espaços e outras pessoas.
As táticas de marketing são promovidas pela indústria do álcool em parceria com outras indústrias numa espécie de “venda casada” na busca de dissociar o seu produto dos prejuízos sociais e promover outros produtos concomitantemente. A presença de jogadores de futebol, de atletas de outros esportes e celebridades aumenta a credibilidade e o apelo da marca, incentivando o consumo como parte da experiência de torcer pelo Brasil ou de estar alinhado aos mesmos hábitos de quem se admira.
As propagandas têm sido eficazes em produzir um consumo inconsciente e excessivo, especialmente durante eventos de alta carga emocional, como os jogos de futebol que citamos, mas também na promoção de eventos musicais e artísticos das indústrias fonográfica, do cinema e do entretenimento de forma geral. A manipulação dos sentimentos de pertencimento e celebração pode fazer com que consumidores ignorem os riscos associados ao consumo, que por sua vez não aparecem nas propagandas como “o outro lado da moeda”.
Ao trazer esses elementos à tona, além de denunciar as práticas prejudiciais da indústria para nossa vida e o meio ambiente, podemos propor formas alternativas de consumo e produção que nos permitam tomar decisões mais autônomas e que evitem que sejamos colocados de maneira arbitrária em uma posição de desvantagem.
Fontes: Pacote técnico SAFER: um mundo livre dos danos relacionados ao álcool. Cinco áreas de intervenção em âmbito nacional e estadual. Washington D.C.: Organização Pan-Americana da Saúde; 2020. Licença: CC BY-NC-SA 3.0 IGO. https://www.paho.org/pt/topicos/alcool/safer
Movendi International: Álcool como obstáculo ao desenvolvimento. Como o Álcool Afeta os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil. Spotlight Report 2022.
MENDONÇA, Gilson Martins; KOZICKI, Katya; COELHO, Sérgio Reis. O princípio da vulnerabilidade e as técnicas de neuromarketing: aprofundando o consumo como vontade irrefletida. Scientia Iuris Londrina, v. 18, n. 1, p. 135-152, jul. 2014. DOI: 10.5433/2178-8189.2014v18n1p135.