Por Natana Magalhães, mulher negra, historiadora e voluntária AF.
Estar irmanada em grupo de apoio mútuo é ter, dentre uma infinidade de possibilidades que o projeto de uma reforma íntima somado ao fazer coletivo nos traz, a oportunidade de ampliarmos nossas mentes sendo gratas e generosas.
É libertador quando podemos fazer isso sem seguir os moldes comerciais e tóxicos que vêm encontrando campo fértil nas redes sociais e influenciando os comportamentos dos sujeitos. Quem de nós ainda não viu um perfil “gratiluz” que instrui a dizer coisas boas para o universo no intuito de atrair o mesmo numa proporção igual e infalível? Também costumam oferecer uma fórmula mágica para ansiedade, depressão, transtornos alimentares e não acaba por aí. “Em uma semana você pode ficar curada da depressão”, “acesse o link abaixo para comprar meu E-book e receber 10 dicas para se livrar das crenças limitantes que geram ansiedade”.
Não é uma prática nova se utilizar dos anseios, fragilidades e pretensões de pessoas que buscam algum tipo de acolhimento por estar vivendo uma situação de sofrimento, angústia ou insatisfações. A narrativa da solução rápida e prontinha para termos a vida inatingível, num corpo irretocável, com a saúde mental “nos trinques” é muito sedutora. Mas sabemos que é muito destoante da nossa vida real atravessada por aspectos que fogem ao nosso controle. Tratar questões complexas como a saúde demanda tempo, esforços, custos financeiros e simbólicos. Não se realiza com “abracadabra”.
Nesses últimos meses, tenho entendido o quanto que os caminhos percorridos por mulheres alcoolistas são repletos de dimensões sutis, sensíveis e subjetivas. Nossa recuperação precisa ser constante, mas não é possível que seja linear, assim como a vida não o é. Mas estar entre companheiras que gentilmente se dispõem a partilhar e ouvir atentamente sobre o cotidiano, seus percalços e conquistas retroalimenta a recuperação de cada uma, seja a daquela que está há anos em abstinência ou a que chegou na primeira reunião.
Todas temos nossa história anterior e para além do alcoolismo. Mesmo sendo este o motivo principal que conjuga e propicia nosso encontro. A vontade de viver bem, com dignidade e livre de quaisquer que sejam as amarras estão nesse processo.
Nesse sentido, trago a reflexão sobre sermos gratas sem o esvaziamento produzido pelo “mercado da cura” o que eu julgo muito importante visto que nossa recuperação é um processo orgânico de retomada de protagonismo da própria vida e não um produto. Somos a peça principal do nosso tratamento e o elo criado em redes e grupos é o fermento natural que faz crescer e nutrir a nossa luta para que mais mulheres cheguem até nós.
Quando entendemos que o alcoolismo é um problema de saúde pública e que vem assolando cada vez mais mulheres, percebemos que ao mesmo tempo em que nos beneficiamos em espaços coletivos que oferece acesso a tratamento e apoio, também temos a chance de nos deslocar do campo individual e até egoísta de nossos tempos e contribuir para que outras pessoas se aproximem das discussões, conteúdos informativos, das próprias reuniões, de orientações sobre itinerários terapêuticos via SUS, AF, AA e outras entidades.
Ou seja, estar em grupo é poder se perceber dentro de uma diversidade de histórias, origens, subjetividades, endereços, condições muitas vezes assimétricas. É termos a chance de não julgarmos e não sermos julgadas, conscientes de que não somos iguais e que muitas sequer conseguem chegar até nós porque além do alcoolismo existe uma série de vulnerabilidades que as perpassam. Particularmente, olhar com carinho e generosidade para essas questões tem mobilizado e fortalecido a minha recuperação.
Talvez seja por isso que eu esteja escrevendo em primeira pessoa, porque o que estou vivendo tem melhorado tanto os meus dias que tem reacendido a minha verve ativista que anseia e busca lutar por uma sociedade mais equânime.
Para encerrar, é uma praxe agradecer pelo serviço prestado em sala. Quando respeitamos e agradecemos pelo trabalho e o tempo que uma companheira dedica estamos valorizando a prática individual, a construção coletiva, a importância daquele trabalho continuar existindo, visto que depois muito provavelmente seremos nós que estaremos naquela função ou em alguma outra que incentive sua constância, pois gratidão sem generosidade é apenas consumo.
Portanto, agradeço por cada companheira, pela iniciativa da AF que tem salvo vidas e desejo que sejamos agradecidas pela generosidade do mês de setembro que nos presenteia com a chegada da Primavera e a alegria dos sorrisos das crianças ao se deliciar com doces. Gratidão por ter lido até aqui.
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